DETRAÇÃO PENAL E O TRABALHO DO PRESO

 

 Adel El Tasse[1]

a) Delimitação da problemática em estudo

 

Na execução da pena, assume destacada importância verificar as conseqüências que se possa atribuir pelo período de encarceramento, ou internação provisória, que sofreu o indivíduo posteriormente condenado em processo criminal.

Seria inaceitável que o período processual de limitação da liberdade fosse depois, quando advinda a condenação definitiva, ignorado, mesmo sendo o fundamento da condenação distinto do que motivou a tutela cautelar, posto que, na essência, atingiu o bem jurídico liberdade da mesma pessoa, pelo mesmo fato original.

Este é o campo em que se insere o tema da detração penal, ou seja, da atribuição de efeitos ao período provisório de limitação da liberdade, quer por aprisionamento, quer por internação.

De outro lado, as modernas análises da execução da pena têm aconselhado o trabalho do preso como fator essencial de seu desenvolvimento e adequado atendimento aos estímulos positivos da punição.

Para que efeitos produzam o trabalho, visualiza-se a necessidade de atribuição de características próprias quando se esteja diante do indivíduo condenado, porém com a garantia dos direitos essenciais do trabalhador, tal como jornada e remuneração definidas em lei.

O presente ensaio se propõe à verificação das regras gerais orientadoras destes dois aspectos da execução penal, abordando os efeitos do tempo de prisão, ou internamento anterior à condenação, e as regras aplicáveis ao trabalho do preso.

 

b) Efeitos da prisão e do internamento processual na execução da pena definitiva

É de se observar que o tempo de prisão, ou internamento, ao qual foi submetido o sentenciado, antes de sua definitiva condenação, deve ser descontado da pena a ser cumprida. Este instrumental é chamado detração penal.

O artigo 42, do Código Penal, garante o abatimento, na pena final, que será cumprida pelo condenado, do tempo em que esteve preso provisoriamente[2], administrativamente ou houver sofrido internação em casas de saúde.

Por prisão provisória devem ser entendidas as hipóteses em que permanecer, no inquérito policial ou ao longo do processo, reclusa a pessoa posteriormente condenada. Seus gêneros são: prisão em flagrante, prisão temporária e prisão preventiva.

A doutrina refere, ainda, à prisão decorrente da sentença de pronúncia, bem como a decorrente da sentença penal condenatória, o que se mostra de evidente impropriedade, ante o atual estágio de avanço da legislação processual em torno da prisão provisória.

A pronúncia ou a condenação não importam, na atual sistemática jurídica pátria, em automática decretação da prisão, que somente poderá ocorrer se presentes os requisitos da prisão preventiva, de sorte que não se está falando em outra coisa que não na própria prisão preventiva.

Por que então refere a doutrina à prisão decorrente da pronúncia e à prisão decorrente da sentença penal condenatória? A razão reside no fato de que o vetusto Código de Processo Penal prevê tais hipóteses que, porém, não encontram respaldo na atual Constituição Federal, que no inciso LXI artigo 5º, admite a prisão somente em flagrante ou mediante ordem fundamentada da autoridade judicial, salvo nas infrações militares disciplinares ou nos crimes propriamente militares. Ao referir, o texto constitucional, à ordem fundamentada da autoridade judicial, deixou de considerar possível o decreto prisional pelo simples fluir de uma etapa processual, como a pronúncia, no procedimento especial do Tribunal do Júri, ou a sentença penal condenatória recorrível. O juiz deve fundamentar o ato de aprisionamento com atenção às circunstâncias do artigo 312, do Código de Processo Penal[3], portanto, tem-se típica situação de prisão preventiva.

A outra hipótese de segregação anterior à condenação penal transitada em julgado que permite a detração penal é a prisão administrativa, que pode decorrer de infrações disciplinares hierárquicas, no caso dos militares, ou de demais atos cujo decreto seja proveniente de autoridade judiciária, porém tem cunho administrativo conforme a razão que motivou a segregação ou a finalidade de sua realização.

A esse propósito observa-se que a noção da prisão administrativa, em sentido estrito, é apontada como sendo "aquela decretada por autoridade administrativa, por motivos de ordem administrativa e com finalidade administrativa"[4], sofrendo uma alteração a medida em que "a prisão administrativa pode ser decretada pelo juiz ou pela autoridade administrativa. Entretanto, por força do artigo 5.º, LXI, da Constituição Federal de 1988, ninguém pode ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Assim, excetuada a hipótese da transgressão militar, a prisão administrativa não pode ser decretada pela autoridade administrativa no que se relaciona com as situações nelas especificadas, mas apenas que a prisão só poderá ser decretada por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Já se tem decidido, por exemplo, no Supremo Tribunal Federal, que a prisão para fins de extradição pode ser decretada por Ministro do STF em atendimento à solicitação do Ministério da Justiça.”·

A internação em casas de saúde, acompanhada judicialmente, do indivíduo apenado, é computada para fins da detração penal. Embora o artigo 42, do Código Penal, refira-se a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, o certo é que qualquer estabelecimento adequado em que seja internada a pessoa, com finalidade terapêutica, terá seu tempo considerado para detração penal.

Resta referir, ainda, que tem prevalecido, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que, embora não expressamente previsto em lei, é viável o emprego da detração penal quando for decretada a prisão civil do devedor de alimentos ou do depositário infiel e haja dívida civil e ilícito criminal oriundos do mesmo fato, em que seja o agente condenado.[5]

Existe um interessante debate em torno da admissibilidade da detração penal quando a prisão provisória, a administrativa ou o internamento em casas de saúde decorrerem de crime diverso daquele do qual resultou a sentença penal condenatória.[6]

 Parece que "a lógica indica que quando uma pessoa está privada da liberdade, em razão de uma cautelar decorrente de um crime, e ao mesmo tempo sujeita a processo por outro crime, sem estar neste submetida a uma cautelar, desde que a submissão a processo por um dos delitos e medida cautelar pelo outro sejam coetâneos, total ou parcialmente, deve-se computar esse tempo na pena privativa de liberdade fixada no processo em que não estava submetido a cautelar, se absolvido no outro."[7]

 

c) O trabalho do preso

 

Os efeitos benéficos do trabalho sobre o ser humano, na formação de sua índole, na sua dignificação e engrandecimento enquanto cidadão, conduziram que a Lei de Execução Penal o valorasse como um dever social, com finalidade educativa e produtiva.[8]

O preso tem no trabalho uma forma de ocupação enobrecedora do tempo que permanece recluso no cumprimento da pena, embora, lamentavelmente, no panorama nacional ainda “é o ócio que impera em nossas prisões. Para superar esta situação, é imprescindível analisar conjunturalmente a complexidade deste instituto”[9], garantindo-se o incremento da atividade laboral, pelos reclusos, em benefício de toda sociedade.[10]

Cumpre destacar que “com a humanização da pena, o caráter aflitivo será tolhido como característica do trabalho penitenciário. As Regras Mínimas da ONU, declaram o princípio da não aflitividade do trabalho.”[11]

A jornada de trabalho do preso não pode ser inferior a seis (06) horas diárias, nem superior a oito (08) horas diárias. Será remunerado em valor nunca inferior a 3/4 do salário mínimo, sendo que a remuneração, por sua vez, tem destino certo, previsto na própria Lei de Execução Penal[12]: a) indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e não reparados por outros meios; b) assistência à família; c) pequenas despesas pessoais; d) ressarcimento do Estado pelas despesas realizadas com a manutenção do condenado, proporcionalmente; e) o saldo restante, se houver, deve ser depositado em caderneta de poupança para a formação de pecúlio, que será entregue ao condenado quando sair da prisão.

O trabalho realizado pelo preso, dentro das condições estabelecidas em lei, lhe confere a possibilidade de abater, a cada três dias trabalhados um dia da pena a si fixada.[13] Este desconto de um dia de pena a cada três trabalhados recebe o nome de remição.[14]

Nesse sentido, cumpre observar que a lei, ao valorar o trabalho, fixando-o como um "direito do condenado está apenas estabelecendo princípios programáticos, como faz a Constituição quando declara que todos têm direito ao trabalho, educação e saúde. No entanto, tem-se milhões de desempregados, de analfabetos, de enfermos e de cidadãos vivendo de forma indigna. Por outro lado, os que sustentam o direito à remição, independentemente de o condenado ter trabalhado, não defendem também o pagamento da remuneração igualmente prevista na lei, o que seria lógico."[15]

Assim, inexiste possibilidade de pretender beneficiar-se da remição sob o argumento de que faltam postos de trabalho, pois tal solução seria inaceitável, confrontando com o sistema na Lei de Execução Penal e com o próprio sentido teleológico da remição, que é estimular o preso a ocupar seu tempo com o trabalho.

A remição é declarada pelo Juiz, ouvido o Ministério Público, sendo seus efeitos considerados tanto para o livramento condicional como para o indulto. 

Em hipótese de acidente de trabalho, em que o preso não puder continuar trabalhando, permanece o mesmo se beneficiando da remição; ao passo que o cometimento de falta grave implica na perda do direito aos dias já remidos, devendo o interno reiniciar o cômputo do prazo a partir da data da infração.


Referências Bibliográficas

 

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte geral. São Paulo: Saraiva, 1999.

 

DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

 

MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1996.

 

PRADO, Luiz Regis, Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

 

RIOS, Rodrigo Sánchez. Prisão e trabalho. Curitiba: Universitária Champagnat, 1994.

 

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERRANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

 


[1]O autor é Advogado em Curitiba. Titulariza o cargo de Procurador Federal junto à Universidade Federal do Paraná. Desempenha a atividade do Magistério, na cadeira de Direito Penal, em cursos de graduação e pós-graduação, em diferentes instituições de ensino superior. Professor nas Escolas da Magistratura Federal e Estadual do Estado do Paraná. Instrutor no Curso Superior para Formação de Oficiais da Polícia Militar do Estado do Paraná. Professor e Diretor do Curso Jurídico, preparatório para exame da Ordem dos Advogados do Brasil e de atualização para Advogados (Curitiba/PR). Professor no Curso LFG (São Paulo/SP). Mestre em Direito Penal, desenvolveu seus trabalhos de pesquisa sob a orientação do Ilustre e renomado Jurista Luiz Regis Prado. Doutorando em Direito Penal. Integrante da coordenadoria do Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais.

[2] “É preciso esclarecer, por oportuno, que a prisão provisória mencionada pela lei é a prisão processual, ou seja, a prisão que pode ocorrer previamente à sentença condenatória irrecorrível. Esse termo — ‘prisão provisória’— deve ser interpretado de modo amplo, abarcando todas as medidas cautelares de restrição da liberdade.” (PRADO, Luiz Regis, Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 468).

[3] CP. Art. 312 "A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria."

[4] MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1996, p. 392-393.

[5] Exemplos: Abandono material em relação ao devedor de alimentos e apropriação indébita em relação ao depositário infiel.

[6] Cf. PRADO, Luiz Regis, op. cit.,  p. 469.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERRANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 794.

[8] Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984, art. 29.

[9] RIOS, Rodrigo Sánchez. Prisão e trabalho. Curitiba: Universitária Champagnat, 1994, p. 44.

[10] Uma interessante proposta para a problemática do trabalho do recluso observa que “cada instituição carcerária deveria traçar um perfil do grau de escolaridade de cada um dos presos, para poder outorgar-lhes uma adequada formação profissional. Esta formação profissional deve ser vinculada a um estudo sobre o mercado de trabalho da Região onde situa-se o estabelecimento carcerário. Num estudo específico sobre o tema Britto advertia: ‘sem ofício, sem profissão, o egresso obtém, quando muito, empregos temporários, ao final dos quais é dispensado, tendo que procurar outros, enfrentando novamente todas as dificuldades anteriores, agravadas pela sua condição de egresso de um sistema penitenciário’” (RIOS, Rodrigo Sánchez, op. cit., p. 70-71.).

[11] RIOS, Rodrigo Sánchez, op. cit., p. 70.

[12] Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984, art. 29, §§ 1º e 2º.

[13] A remição tem “antecedente no Direito Penal espanhol — ‘redenção de penas pelo trabalho’ —, foi a remição, em princípio, destinada unicamente aos presos políticos da Guerra Civil.” (PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 466).

[14] Conforme pontua René Ariel Dotti: “Não existe remição ficta. Se não houver acesso ao trabalho por má-fé, deficiência ou impossibilidade da administração, não se poderá escamotear pelo atestado falso o que não existiu. As omissões e as mazelas do sistema penitenciário devem ser combatidas com os meios legais e adequados e não com o recurso ao crime de falsidade ideológica em concurso com a prevaricação. Embora o trabalho constitua um direito-dever de todos os cidadãos, sendo igualmente certo que a atribuição do trabalho e sua remuneração se colocam entre os primeiros direitos do preso (LEP, art. 41, II), não é possível, factual e juridicamente, declarar o que não existiu. A orientação em sentido contrário, resultante de uma doutrina equivocada e de uma jurisprudência aberrante, não consegue superar quatro obstáculos que se opõem a essa 'liberalidade': a) concede igual benefício para quem trabalha e quem não trabalha; b) nega vigência à regra do devido procedimento legal que dispõe sobre a contagem dos dias trabalhados (LEP, art. 129); c) descaracteriza um dos efeitos da punição pela falta grave (LEP, art. 127); d) estimula a prática oficial dos delitos de prevaricação e falsidade ideológica.” (DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 608).

[15] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte geral. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 436.